Decidi, como milhares de brasileiros e brasileiras, ir à posse de Lula. Essa decisão foi pautada por inúmeros significados e embalada por um único desejo — preciso participar desse momento histórico.
Arrumei as malas, e nela não poderiam faltar duas camisetas com a imagem do presidente Lula. Sabia eu que por lá encontraria outras tantas coisas que complementariam a alegria da festa da posse — a festa da Democracia.
Chegamos no dia 29 de dezembro, por volta das 9 horas da manhã, e aproveitamos para dar um giro em Brasília. Não faltou visita ao Museu Nacional da República, que apresentava apenas uma exposição na parte térrea — o espaço superior somente abriria dia 1º/01 com a exposição Brasil Futuro, com curadoria de Lilia Schwarcz, Paulo Vieira, Márcio Tavares e Rogério Carvalho, composta por 180 obras de diferentes artistas brasileiros, uma homenagem ao regime democrático desenhada a partir de recortes de gênero, raça, diversidade e região. Visitamos o Memorial JK — espaço também revelador da luta histórica pela democracia. Da visita à catedral, na Esplanada dos Ministérios, o clima de preparação para a posse já deixava visível o reforço da segurança com fechamento de várias vias de acesso.
Nesse dia, o que mais chamou atenção foi quando nos aproximamos do Palácio da Alvorada e nos deparamos com um grupo de apoiadores do até então presidente Bolsonaro. Havia em torno de 150 pessoas vestindo verde amarelo, alguns portavam a bíblia, outros cantavam o hino nacional, outros rezavam o pai nosso. Confesso que ver isso causou-me um sentimento de assombro, pois eram pessoas que pareciam crentes que Bolsonaro iria aparecer. Seriam eles os ‘salvadores da pátria’, e a posse não aconteceria.
Fiquei imaginando como é sedutor o poder incorporado em uma mistura de fé, religião e patriotismo. Um poder arrogante que nos mirava como inimigos. Havia um clima de profundo estranhamento entre nós e eles — o que causava medo.
Olhando para aquele cenário, para o cercadinho vazio — palco de tantas insanidades —, para um caminhão de mudança ainda presente próximo da residência oficial, para a guarda presidencial, para as bíblias empunhadas e vozes de reza, confesso que a única coisa que animava era o espelho d’água e as emas. Descontraí brincando de descobrir qual havia bicado o presidente — no momento da pandemia em que ele desdenhava da gravidade do vírus e das mortes.
Nos dias seguintes circulamos pelos acampamentos e acompanhamos inúmeros momentos da chegada das caravanas de todo o Brasil — as cenas eram de festa, de alegria e de partilha. Partilha dos sorrisos, das canções entoadas, dos cumprimentos e abraços — éramos entrelaçados automaticamente. Assim, irmanados pela riqueza das nossas diferenças, assistimos, no dia 1º de janeiro, sob céu azul e sol radiante, à posse do presidente Lula. Uma posse, sem dúvida, carregada de significados e esperança para milhões de brasileiros e brasileiras.
Bem, eu gostaria de continuar apenas narrando esses dias em Brasília, mas o domingo seguinte (08/01/23), muda o percurso e marca de modo lamentável a história da democracia brasileira. A invasão, a depredação e o roubo do patrimônio histórico dos três poderes são cenas de extrema violência, cenas de perplexidade jamais vista, e não podem fugir à nossa reflexão.
São inúmeras as análises sobre esses episódios, e, certamente, há analistas e estudiosos de várias áreas que, ao longo dos últimos 10 anos, têm pesquisado e alertado sobre a crescente onda antidemocrática e de extrema direita que avança no país. Ações estimuladas e protagonizadas pelo presidente e o governo derrotado. Essa onda de violência, de ataque ao meio ambiente, à ciência, à educação, à cultura, à pluralidade religiosa e de ideias, não há menor dúvida, se institucionalizou.
A adoração à violência e aos torturadores e o chamamento claro e aberto à ditadura foram banalizados pelas autoridades constituídas enquanto boa parte da massa brasileira foi cooptada pelo conhecido slogan “Deus, pátria e família”, por uma eficiente rede de comunicação e divulgação de notícias falsas — sem nos esquecermos das igrejas conservadoras que se tornaram verdadeiras incubadoras de extremistas. Ingredientes perfeitos para a barbárie que vivemos.
Há muito a fazer nesse cenário. E essa deve ser uma responsabilidade de todos que ainda mantêm certa lucidez sobre a realidade. Antes, é claro, esperamos da justiça a aplicação correta da lei. E por aqui, nas terras catarinenses, certamente o trabalho será ainda maior, sobretudo para desmantelar o que mais nos envergonha — a grande teia neonazista instalada.
Volto, então, ao clima da posse — aquele em que celebrávamos a Democracia — e rememoro uma cena em frente ao Palácio da Alvorada, agora já no dia 02 de janeiro — eu frequentei aquele lugar por quatro dias. O clima continuava radiante — não pelo fato de haver sol, mas pela mudança dos frequentadores do local. Agora já não víamos as camisas da seleção nem, preciso frisar, vermelhas como no dia da posse. Havia um colorido nas vestes, e as pessoas que por ali circulavam estavam, como eu, visivelmente mais alegres e descontraídas.
Chamou minha atenção um homem de estatura baixa, cabelos pretos, que falava ao telefone em tom alto e com olhar vibrante sobre a paisagem, mas gravei apenas uma frase dessa conversa — expressão que desde então está ecoando pela alegria e orgulho com que era proferida: “mãe, eu estou na casa do Lula”. Essa afirmação me remete ao clima da democracia, do acolhimento de milhões de brasileiros que se sentem reintegrados, repatriados. Milhões de brasileiros que mantêm uma intimidade com o presidente Lula sem mesmo chegar perto fisicamente. Uma intimidade que vai na direção da horizontalidade e da hospitalidade — que sempre julgamos genuína no povo brasileiro.
Da festa da posse e mediante os atos antidemocráticos, desejo que possamos retornar à casa da humanidade e da civilidade. Que possamos nos reorganizar como nação, como pertencentes a um país que tem a Democracia como seu maior patrimônio e cada um dos brasileiros e brasileiras como irmãos — guardiões da paz, do cultivo do diálogo respeitoso das diferenças. Que possamos dizer uníssonos: “mãe, estamos no Brasil — e vamos lutar sempre pela democracia”.
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